PERDA DO PARAÍSO
13. — CAPÍTULO II.
— 9. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo
um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara. — O Senhor Deus
também fizera sair da terra toda espécie de árvores belas ao olhar e cujo fruto
era agradável ao paladar e, no meio do paraíso, a árvore da vida, com a árvore
da ciência do bem e do mal. (Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra (min haadama) toda árvore bela de ver-se e boa para comer-se e a árvore da
vida (vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e
do mal).
15. O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou
em o paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. — 16. Deu- lhe
também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do paraíso. (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (hal haadam) dizendo: De toda árvore do jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas absolutamente o fruto da
árvore da ciência do bem e do mal; porquanto, logo que o comeres, morrerás com
toda a certeza. (E da árvore do bem e do
mal (oumehetz hadaat tob vara) não comerás, pois que no dia em que dela comeres
morrerás.)
14. — CAPÍTULO III.
— 1. Ora, a serpente
era o mais fino de todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela disse
à mulher: Por que vos ordenou Deus que não comêsseis os frutos de todas as
árvores do paraíso?
(E a serpente (nâhâsch) era mais astuta do
que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela disse à mulher
(el
haïscha): Terá
dito Eloim: Não comereis de nenhuma árvore do jardim?)
— 2. A mulher
respondeu:
Comemos dos frutos de
todas as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente, do fruto (miperi) das árvores do jardim
podemos comer.)
— 3. Mas, quanto ao
fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não
comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o perigo de
morrer.
— 4. A serpente
replicou à mulher: Certamente não morrereis. — Mas, é que Deus sabe que, assim
houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e
o mal.
6. A mulher
considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer; que era belo e
agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu marido, que também
comeu. (Ela
viu, a mulher, que ela era boa, a árvore como alimento, e que era desejável a
árvore para compreender (léaskil), e tomou de seu fruto, etc.)
8. E como ouvissem a
voz do Senhor Deus, que passeava à tarde pelo jardim, quando sopra um vento
brando, eles se retiraram para o meio das árvores do paraíso, a fim de se
ocultarem de diante da sua face.
9. Então o Senhor
Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás?
— 10. Adão lhe
respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, essa a
razão por que me escondi.
— 11. O Senhor lhe
retrucou: E como soubeste que estavas nu, senão porque comeste o fruto da
árvore da qual eu vos proibi que comêsseis?
— 12. Adão lhe
respondeu: A mulher que me deste por companheira me apresentou o fruto dessa
árvore e eu dele comi.
— 13. O Senhor Deus
disse à mulher: Por que fizeste isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu
comi desse fruto. 14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito isso,
serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da terra; rojar-te-ás
sobre o ventre e comerás a terra por todos os dias de tua vida.
— 15. Porei uma
inimizade entre ti e a mulher, entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a
cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar.
16. Deus disse também
à mulher: Afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com
dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará.
17. Disse em seguida
a Adão: Por haveres escutado a voz de tua mulher e haveres comido do fruto da
árvore de que te proibi que comesses, a terra te será maldita por causa do que
fizeste e só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda
a tua vida.
— 18. Ela te
produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a erva da terra.
— 19. E comerás o teu
pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra donde foste tirado, porque
és pó e em pó te tornarás.
20. E Adão deu à sua
mulher o nome de Eva, que significa a vida,
porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus
também fez para Adão e sua mulher vestiduras de peles com que os cobriu.
— 22. E disse: Eis aí
Adão feito um
de nós,
sabendo o bem e o mal. Impeçamos, pois, agora, que ele deite a mão à árvore da
vida, que também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto, viva
eternamente. (Ele
disse, Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do
bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida (veata pen
ischlachyado velakach mehetz hachayim); comerá dela e viverá eternamente.)
23. O Senhor Deus o
fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da
terra donde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins diante do jardim de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para
guardarem o caminho que levava à árvore da vida.
15. Sob uma imagem pueril
e às vezes ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria oculta freqüentemente
as
maiores verdades.
Haverá fábula mais absurda, à primeira vista, do que a de Saturno, o deus que
devorava pedras, tomando-as por seus filhos? Todavia, que de mais profundamente
filosófico e verdadeiro do que essa figura, se lhe procuramos o sentido moral!
Saturno é a personificação do tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é
o pai de tudo o que existe; mas, também, tudo se destrói com o tempo. Saturno a
devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos,
seus filhos, visto que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma alegoria,
escapa a semelhante destruição? Somente Júpiter, símbolo da inteligência
superior, do princípio espiritual, que é indestrutível. É mesmo tão natural
essa imagem, que, na linguagem moderna, sem alusão à Fábula antiga, se diz, de
uma coisa que afinal se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida,
devastada pelo tempo. Toda a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade, do
que um vasto quadro alegórico das diversas faces, boas e más, da Humanidade.
Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta filosofia,
como acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em tomarem a forma pelo
fundo.
16. Outro tanto se dá com
a Gênese, onde se tem que perceber grandes verdades morais debaixo das figuras
materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como se, em nossas
fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e os diálogos atribuídos aos
animais. Adão personifica a Humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do
homem, em quem predominam os instintos materiais a que ele não sabe resistir.
A árvore, como árvore
de vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da Ciência, é o da
consciência, que o homem adquire, do bem e do mal, pelo desenvolvimento da sua
inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele escolhe entre um e
outro. Assinala o ponto em que a alma do homem, deixando de ser guiada
unicamente pelos instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na
responsabilidade dos seus atos. O fruto da árvore simboliza o objeto dos
desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; concretiza,
numa figura única, os motivos de arrastamento ao mal. O comer é sucumbir à
tentação. A árvore se ergue no meio do jardim de delícias, para mostrar que a
sedução está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se dá preponderância
aos gozos materiais, o homem se prende à Terra e se afasta do seu destino
espiritual. A morte de que ele é ameaçado, caso infrinja a proibição que se lhe
faz, é um aviso das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da
violação das leis divinas que Deus lhe gravou na consciência. É por demais evidente
que aqui não se trata da morte corporal, pois que, depois de cometida a falta,
Adão ainda viveu longo tempo, mas, sim, da morte espiritual, ou, por outras
palavras, da perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda figurada
pela sua expulsão do jardim de delícias.
17. A serpente está longe
hoje de ser tida como tipo da astúcia. Ela, pois, entra aqui mais pela sua
forma do que pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos, que
se insinuam como a serpente e da qual, por essa razão, o homem, muitas vezes,
não desconfia. Ao demais, se a serpente, por haver enganado a mulher, é que foi
condenada a andar de rojo sobre o ventre, dever-se-á deduzir que antes esse
animal tinha pernas; mas, neste caso, não era serpente. Por que, então, se há
de impor à fé ingênua e crédula das crianças, como verdades, tão evidentes alegorias,
com o que, falseando-se-lhes o juízo, se faz que mais tarde venham a considerar
a Bíblia um tecido de fábulas absurdas? Deve-se, além disso, notar que o termo
hebreu nâhâsch, traduzido por
serpente, vem da raiz nâhâsch, que significa: fazer encantamentos,
adivinhar as coisas ocultas, podendo, pois, significar: encantador, adivinho. Com esta acepção,
ele é encontrado na própria Gênese, 44:5 e 15, a propósito da taça que José
mandou esconder no saco de Benjamim: “A taça que roubaste é a em que meu Senhor
bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch)1. — Ignoras que não
há quem me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não há
encantamentos (nâhâsch) em Jacob, nem
adivinhos em Israel.” Daí o haver a palavra nâhâsch tomado também a
significação de serpente, réptil que os
encantadores tinham a pretensão de encantar, ou de que se serviam em seus
encantamentos. A palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson,
corromperam o texto hebreu em muitos lugares — versão essa escrita em grego no
segundo século da era cristã. As suas inexatidões resultaram, sem dúvida, das
modificações que a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, porquanto
o hebreu do tempo de Moisés era uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar,
tanto quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe
modernos. É, pois, provável que Moisés tenha apresentado como sedutor da mulher
o desejo de conhecer as coisas ocultas, suscitado pelo Espírito de adivinhação,
o que concorda com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro
lado, com estas palavras: “Deus sabe que, logo que houverdes comido desse
fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses. — Ela, a mulher,
viu que era cobiçável a árvore para compreender (léaskil) e tomou do seu
fruto.” Não se deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre os hebreus a
arte da adivinhação praticada pelos egípcios, como o prova o haver proibido que
aqueles interrogassem os mortos e o Espírito Piton. (O Céu e o Inferno segundo o
Espiritismo, cap. XII.)
18. A passagem que diz:
“O Senhor passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta vento brando”, é uma
imagem ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar; mas,
nada tem que surpreenda, se nos reportamos à ideia que os hebreus dos tempos
primitivos faziam de Deus. Para aquelas inteligências frustas, incapazes de
conceber abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta e eles tudo referiam
à Humanidade, como único ponto que conheciam. Moisés, por isso, lhes falava
como a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de que se trata, tem-se
personificada a Potência soberana, como os pagãos personificavam, em figuras alegóricas,
as virtudes, os vícios e as ideias abstratas. Mais tarde, os homens despojaram
da forma a ideia, do mesmo modo que a criança, tornada adulta, procura o
sentido moral dos contos com que a acalentaram. Deve-se, portanto, considerar essa
passagem como uma alegoria, figurando a Divindade a vigiar em pessoa os objetos
da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno Deus,
percorrendo o jardim, do lado donde vem o dia.”
19. Se a falta de Adão
consistiu literalmente em ter comido um fruto, ela não poderia,
incontestavelmente, pela sua natureza quase pueril, justificar o rigor com que
foi punida. Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o fato seja
qual geralmente o supõem; se o fosse, teríamos Deus, considerando-o irremissível
crime, a condenar a sua própria obra, pois que ele criara o homem para a
propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no fruto da
árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria a
Humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador? Deus não criara
Adão e Eva para ficarem sós na Terra; a prova disso está nas próprias palavras
que lhes dirige logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam no
paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso
domínio.” (Gênese,1:28.) Uma vez que a
multiplicação era lei já no paraíso terrestre, a expulsão deles dali não pode
ter tido como causa o fato suposto.
O que deu crédito a
essa suposição foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o
olhar de Deus e que os levou a se ocultarem. Mas, essa própria vergonha é uma
figura por comparação: simboliza a confusão que todo culpado experimenta em
presença de quem foi por ele ofendido.
20. Qual, então, em
definitiva, a falta tão grande que mereceu acarretar a reprovação perpétua de
todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi tratado
tão severamente. Nenhum teólogo a pode definir logicamente, porque todos,
apegados à letra, giraram dentro de um círculo vicioso. Sabemos hoje que essa
falta não é um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que compreende, sob
um único fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a Humanidade da
Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem nisto: infração da lei de
Deus.
Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este a Humanidade, tem por
símbolo um ato de desobediência.
21. Dizendo a Adão que
ele tiraria da terra a alimentação com o suor de seu rosto, Deus simboliza a
obrigação do trabalho; mas, por que fez do trabalho uma punição? Que seria da
inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse pelo trabalho? Que seria da
Terra, se não fosse fecundada, transformada, saneada pelo trabalho inteligente
do homem? Lá está dito (Gênese, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda não
havia feito chover sobre a Terra e não havia nela homens que a cultivassem. O
Senhor formou então, do limo da terra, o homem.” Essas palavras, aproximadas
destas outras: Enchei
a Terra,
provam que o homem, desde a sua origem, estava destinado a ocupar toda a Terra e a
cultivá-la,
assim como, ao demais, que o paraíso não era um lugar circunscrito, a um canto
do globo. Se a cultura da terra houvesse de ser uma consequência da falta de
Adão, seguir-se-ia que, se Adão não tivesse pecado, a Terra permaneceria inculta
e os desígnios de Deus não se teriam cumprido. Por que disse ele à mulher que,
em consequência de haver cometido a falta, pariria com dor? Como pode a dor do
parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo e quando está provado,
fisiologicamente que é uma necessidade? Como pode ser punição uma coisa que se
produz segundo as leis da Natureza? É o que os teólogos absolutamente ainda não
explicaram e que não poderão explicar, enquanto não abandonarem o ponto de
vista em que se colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras que
parecem tão contraditórias.
22. Notemos, antes de
tudo, que se, no momento de serem criados os dois, as almas de Adão e Eva
tivessem vindo do nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser bisonhos em
todas as coisas; haviam, pois, de ignorar o que é morrer. Estando sós na Terra, como
estavam, enquanto viveram no paraíso, não tinham assistido à morte de ninguém.
Como, então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que
Deus lhes fazia? Como teria Eva podido compreender que parir com dor seria uma
punição, visto que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera filhos
e era a única mulher existente no mundo? Nenhum sentido, portanto, deviam ter,
para Adão e Eva, as palavras de Deus. Mal surgidos do nada, eles não podiam
saber como nem por que haviam surgido dali; não podiam compreender nem o
Criador nem o motivo da proibição que lhes era feita. Sem nenhuma experiência
das condições da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento, o que
ainda mais incompreensível torna a terrível responsabilidade que Deus fez pesar
sobre eles e sobre a Humanidade inteira.
23. Entretanto, o que
constitui para a Teologia um beco sem saída, o Espiritismo o explica sem
dificuldade e de maneira racional, pela anterioridade da alma e pela
pluralidade das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na vida
do homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo logo
se justifica: Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres em estado de
o compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos trazem
aquisições anteriormente realizadas. Admitamos, ao demais, que hajam vivido em
um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho do
Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra a lei de
Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e exilados, por
punição, para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido a
um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus assistia razão para lhes
dizer: “No mundo onde, daqui em diante, ides viver, cultivareis a terra e dela
tirareis o alimento, com o suor da vossa fronte”; e, à mulher: “Parirás com
dor,” porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, nos 31 e seguintes.) O
paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente procurados na Terra,
era, por conseguinte, a figura do mundo ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a
raça dos Espíritos que ele personifica. A expulsa do paraíso marca o momento em
que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do mundo terráqueo e a
mudança de situação foi a consequência da expulsão. O anjo que, empunhando uma
espada flamejante, veda a entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em que
se acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores,
antes que o mereçam pela sua depuração. (Veja-se, adiante, o cap. XIV, nos 8 e
seguintes.)
24. Caim, depois do
assassínio de Abel, responde ao Senhor: A minha iniquidade é extremamente
grande, para que me possa ser perdoada. — Vós me expulsais hoje de cima da
Terra e eu me irei ocultar da vossa face. Irei fugitivo e vagabundo pela Terra
e qualquer um então que me encontre matar-me-á. — O Senhor lhe respondeu: “Não,
isto não se dará, porquanto severamente punido será quem matar Caim.” E o
Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o matassem os que viessem a
encontrá-lo. Tendo-se retirado de diante do Senhor, Caim ficou vagabundo pela
Terra e habitou a região oriental do Éden. — Havendo conhecido sua mulher, ela
concebeu e pariu Henoch. Ele construiu (vaïehi bôné; literalmente:
estava construindo) uma cidade a que chamou Henoch (Enoquia) do nome de
seu filho. (Gênese, 4:13 a 16.)
25. Se nos apegarmos à
letra da Gênese, eis as consequências a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós
no mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente tiveram os
dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se Caim retirado para outra região depois
de haver assassinado o irmão, não tornou a ver seus pais, que de novo ficaram isolados.
Só muito mais tarde, na idade de cento e trinta anos, foi que Adão teve um
terceiro filho, que se chamou Seth, depois de cujo nascimento, ele ainda viveu,
segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais filhos e filhas. Quando,
pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden, somente havia na Terra três
pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho, de seu lado.
Entretanto, Caim teve mulher e um filho. Que mulher podia ser essa e onde
pudera ele desposá-la? O texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade e não: ele construiu, o que indica ação
presente e não ulterior. Mas, uma cidade pressupõe a existência de habitantes,
visto não ser de presumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho,
nem que a pudesse edificar sozinho. Dessa própria narrativa, portanto, se tem
de inferir que a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos descendentes de
Adão, que então se reduziam a um só: Caim. Aliás, a presença de outros
habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e
vagabundo e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da resposta que Deus lhe
deu. Quem poderia ele temer que o matasse e que utilidade teria o sinal que
Deus lhe pôs para preservá-lo de ser morto, uma vez que ele a ninguém iria
encontrar? Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de Adão, é que
esses homens aí estavam antes dele, donde se deduz esta consequência, tirada do
texto mesmo da Gênese: Adão não é nem o primeiro, nem o único pai do gênero humano.
(Cap. XI, nº 34.)
26. Eram necessários os
conhecimentos que o Espiritismo ministrou acerca das relações do princípio
espiritual com o princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação
em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união com o corpo, da sua
indefinida marcha progressiva através de sucessivas existências e através dos
mundos, que são outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca da
sua gradual libertação da influência da matéria, mediante o uso do
livre-arbítrio, da causa dos seus pendores bons ou maus e de suas aptidões, do
fenômeno do nascimento e da morte, da situação do Espírito na erraticidade e,
finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por se melhorar e da sua
perseverança no bem, para que se fizesse luz sobre todas as partes da Gênese
espiritual. Graças a essa luz, o homem sabe doravante donde vem, para onde vai,
por que está na Terra e por que sofre. Sabe que tem nas mãos o seu futuro e que
a duração do seu cativeiro neste mundo unicamente dele depende. Despida da
alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta grande e digna da
majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de
vista, ela confundirá a incredulidade e triunfará.
(in A GÊNESE - Os Milagres e as Predileções Segundo o Espiritismo –
Cap. XII Gênese Mosaica “O Paraíso Perdido” v.13 a 26 / Allan Kardec; tradução
de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. Araras, SP, IDE, 52ª edição,
2008).
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