O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem por
outro motivo é que, contra ele, se assestam as principais, as mais possantes
baterias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência
positiva, a inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração
da inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do valor
desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se ao redor desses
inovadores recidivos, engrossando desmesuradamente as hostes materialistas,
primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria
Itália.
Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos se apoiam
em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus não existe,
cometem a mais grave inconsequência.
Acusando-os dessa erronia, haveremos de justificar-nos, ainda que
os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e respeitáveis.
De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que vimos combatê-los. Deixamos
de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo
terreno dos adversários. Não pensamos com Demócrito que, vazar os olhos, para
evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar
frutuosamente a Filosofia, e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na
esfera da observação e da experiência.
Nessa posição, declaramos que por um lado não se prende
imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos
aplicar ao problema os atuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à
negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da Natureza. A
elevação para Deus, mediante o estudo científico da Natureza, nos mantém em
situação equidistante dos dois extremos, isto é: — dos que negam e dos que se
permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se houveram sido
admitidos ao seu conselho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas
potências opostas: — o materialismo e a ilusão religiosa.
Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil,
quanto negar uma causa primária. Em vão se nos objetará não podermos afirmar a
existência de uma entidade que não conhecemos. Precatemo-nos de presunções que
tais. Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também
não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tão-pouco,
conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da
Terra.
“Longe estou de crer — dizia Goethe a Eckermann — que tenha uma
exata noção do Ser supremo. Minhas opiniões, faladas ou escritas, resumem-se nisto:
Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais que uma noção vaga
e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela, somos de tal modo
penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela vivemos, respiramos,
existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade de
leis eternas, perante as quais representamos um papel ativo e
passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com
o bolo, sem cogitar de quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como
a mesma se formou. Que sabemos de Deus?
E que significa, em suma, essa íntima intuição que temos de um Ser
supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria
infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus inumeráveis atributos...
Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, manifesta-se não só no homem como no
âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos grandes acontecimentos
mundiais, a idéia que dele se faz é, evidentemente, exígua.”
A idéia que os antepassados formavam de Deus, em todas as épocas, sempre
esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade.
Tal como o saber humano, essa idéia é variável e deve, necessàriamente,
progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que constituem o patrimônio
da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar
distanciada.
No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que se
obstinasse em estacionar, recuaria realmente. Em nossos dias, já não é
admissível dizer-se, dogmàticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve
guardar o ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha progressiva
do espírito.
No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no
segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro. Digamo-lo
francamente: em ciência experimental, Deus não pode ser admitido a priori e
muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos apreender nas obras da
Natureza.
As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem. Confessemo-nos
com os materialistas e perguntemos se os que tomaram Deus e não a Natureza como
ponto de partida explicaram, algum dia, as propriedades da matéria ou as leis
que governam o mundo. Puderam eles dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do
Sol? — se a Terra era plana ou esférica? — quais os desígnios de Deus, etc.?
Absolutamente. Mesmo porque, seria impossível. Partir de Deus para investigação
e exame da Criação é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método
para estudar a Natureza e inferir consequências filosóficas, no pressuposto de
poder, com uma simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades
naturais, desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.
Mas, pelo fato de havermos substituído a hipótese precedente pelos
resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos fechar os olhos e negar
a inteligência, a sabedoria, a harmonia reveladas pela própria observação?
Haverá motivo para repudiar toda e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio
caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso,
rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, sem embargo de
evidência, rejeitam toda luz e toda conclusão?
Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam, constatamos
as suas recusas e inconsequências. Antes de qualquer controvérsia, importa
determinar as posições recíprocas, por evitar mal-entendidos, esperando nós que
as declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa
atitude. Combateremos francamente o materialismo, não com as armas da fé religiosa,
não com os argumentos da fraseologia escolástica, não com as autoridades tradicionais,
mas pelos raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e
fecunda. Examinemos preliminarmente, num lanço-de-olhos, de conjunto, o processo
geral do ateísmo hodierno. Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que
se utilizou o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o
seu famoso Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual
achava Goethe não haver suficiente desprezo e costumava averbar de — “legítima quintessência
da senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente
científico, todavia, consiste principalmente em declarar que as forças que
dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a matéria, antes
se lhe escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de inteligência) que,
movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo alcance ela não pode,
todavia, apreciar. Pretendem os nossos materialistas atuais que a matéria
existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos
atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para
explicar a existência, estado e conservação do mundo. Dessarte, substituem um
Deus-espírito por um Deus-matéria. Ensinam que a matéria governa o mundo e que
as forças químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades. Para refutar
um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o partido contrário e demonstrar
um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria, incompreensível, a reger a
matéria; estabelecer que a substância é escrava antes que proprietária da
força; provar que a direção do mundo não cabe às moléculas cegas que o
constituem, mas a forças sob cuja ação transparecem as leis supremas. Fundamentalmente,
o problema se resume nesta demonstração e nós esperamos que ela ressaltará
brilhante dos estudos objetivados neste nosso trabalho. E de vez que os
adversários se apoiam em legítimos fatos científicos para estabelecer o erro,
cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos fatos. A bem dizer, ainda que se
demonstrasse que o Universo não é mais que um mecanismo material, cujas forças
não se conjugam a um motor, mas remontam a matéria, subindo e descendo
incessantes num sistema de motilidade perpétua, nem por isso a causa divina
estaria perdida. Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de
Heráclito e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o argumento
dos ateus, enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os espiritualistas.
Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e combatemos o sistema
incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente, diz Caro: (1)
— por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinações e agrupamentos de
átomos eternos. Todas as variedades de fenômenos, o nascimento, a vida, a
morte, mais não são que o resultado mecânico de composições e decomposições, a
manifestação de sistemas atômicos que se reúnem e se separam.
Odinamismo, ao contrário, subordina todos os fenômenos e todos os
seres à idéia de força. O mundo é a expressão, seja de forças opostas e
harmoniosas entre si, ou seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua
engendra a universalidade dos seres. Pode constatar-se que, não obstante ser a
explicação secundária das coisas, até certo ponto, independente da primária, ou
metafísica, a História atesta o fato constante de uma afinidade natural: de um
lado, entre a explicação mecânica e a hipótese supressiva de Deus; e de outro
lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o mundo em seu
princípio. A teoria mecânica, estabelecendo a pura necessidade matemática nas ações
e reações que formam a vida do mundo, é incompleta, por isso que suprime a
causa e dissipa em névoa o mundo moral. A teoria de uma força única, universal,
sempre atual e formando a variedade dos seres pelas suas metamorfoses, ajusta
essa misteriosa universalidade a uma força primordial. Poder-se-ia, portanto,
acusar simplesmente o processo geral dos nossos contraditores de um erro
gramatical, atribuindo à matéria um poder só cabível à força, e pretendendo não
passar esta de mero adjetivo qualificativo, quando lhe cabem os mesmos direitos
daquela, na classe dos substantivos. Examinemos agora, nesta mesma visada de
conjunto, quais os grandes erros que marcham de paralelo e sustentam essa
conduta e que havemos de encontrar sob várias formas, no curso das nossas
contraditas. O primeiro erro geral de que abusam os materialistas é imaginarem
que, pelo fato de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e
não
constante e imutável, em sua perfeição. Ersted, por exemplo, sábio
escrutador do mundo físico, exprimiu sensatamente as relações de Deus com a
Natureza, dizendo que “o mundo é governado por uma razão eterna, cujos efeitos
se manifestam nas leis da Natureza”.
O Dr. Büchner opõe a esse conceito a seguinte especiosa objeção: —
“Ninguém poderia compreender como uma razão eterna, que governa, se conforme com
leis imutáveis. Ou são as leis naturais que governam, ou é a razão eterna. Que
umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em colisão. Se a razão
eterna governasse, supérfluas se tornariam as leis naturais, e se, ao revés,
governam as leis imutáveis da Natureza, elas excluem toda intervenção divina.”
— “Se uma personalidade governa a matéria num determinado sentido — opina
Moleschott — desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada fenômeno se
torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem pelas.”
Havemos de convir que esta grave objeção é singularíssima. É um
raciocínio extravagante que cai pela base. A nós nos parece, pelo contrário,
que a inteligência notória nas leis da Natureza demonstra, no mínimo, a
inteligência da causa a que se devem essas leis, que são, elas mesmas,
precisamente a expressão imutável dessa inteligência eterna. E não será algo
ridículo pretender que essa causa deixe de existir, pelo motivo do íntimo
acordo com essas mesmas leis?
Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade é
tão perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da
sua alma! Diremos, então, que essa alma não existe, visto que para lhe admitir existência
fora preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em desacordo com as
leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar é tão falsa
que os próprios autores que a utilizam são os primeiros a
reconhecê-lo implicitamente. Assim é que Büchner, referindo-se a milagres e ao
fato de haver o clero inglês solicitado a decretação de um dia de jejum e de
preces para conjurar a cólera, elogia Palmaraton por haver respondido que o
surto epidêmico dependia mais de fatores naturais, em parte conhecidos, e
poderia melhor jugular-se com providências sanitárias, antes que com preces. Muito
bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: “Essa resposta lhe acarretou a pecha de
ateísmo e o clero declarou pecado mortal não crer pudesse a Providência
transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.” Mas, que singular idéia
faz essa gente de Deus que por si criou! Um legislador supremo a deixar-se
comover por preces e soluços, a subverter a ordem imutável que ele mesmo
instituiu, a violar por suas próprias mãos a atividade das forças naturais! —
“Todo o milagre, se existisse — diz também Cotta — provaria que a Criação não
merece o respeito que lhe tributamos, e os místicos deveriam deduzir, da
imperfeição do criado, a imperfeição do Criador.” Aí temos os adversários em
contradição consigo mesmos, quando, por um lado, não querem admitir uma razão
eterna em concordância de leis imutáveis, e por outro pensam conosco, que a
idéia de imutabilidade ou, pelo menos, a regularidade, identifica-se muito
melhor com a perfeição ideal do ser desconhecido que denominamos — Deus, do que
a idéia de mutabilidade e arbitrariedade, que umas tantas crenças pretendem
impor-lhe. Um segundo erro geral, não menos funesto que o precedente e que por igual
ilude nossos contraditores, é o de acreditarem que, para existir Deus, importa
colocá-lo fora do mundo. Não vemos pretexto algum racional que possa justificar
uma tal necessidade. E antes do mais, que significa essa idéia de uma causa
soberana extra-mundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto é, o espaço
no qual se movem estrelas e terras, não é infinito por sua mesma essência? Imaginais
um limite a esse mesmo espaço e supondes que ele se não renova além? Será,
então, possível traçar limites à extensão? Onde, pois, imaginar Deus fora do
mundo? Será fora da matéria, o que se quer dizer? Mas, que é a matéria em si? —
agrupamentos de moléculas intangíveis. Portanto, impossível determinar uma
semelhante posição. Deus não pode estar fora do mundo, mas no mesmo lugar do
mundo, do qual é o sustentáculo e a vida. Não fosse temer a pecha de panteísta
e ajuntaríamos que Deus é — a alma do mundo. O Universo vive por Deus, assim
como o corpo obedece à alma. Em vão pretendem os teólogos que o espaço não pode
ser infinito, em vão se apegam os materialistas a um Deus fora do mundo,
enquanto sustentamos que Deus, infinito, está com o mundo, em cada átomo do
Universo — adoramos Deus na Natureza. Entretanto, nossos adversários combatem
estultamente o seu fantasma. “Não há considerar o Universo — diz Strauss — como
ordenação regrada por um espírito fora do mundo, mas, como razão imanente às
forças cósmicas e às suas relações.” A essa razão, chamamo-la — Deus, enquanto
os modernos ateístas aproveitam essa declaração para sentenciar que, em não
existindo fora do mundo, é que Deus não existe. “Tudo, — diz H. Tuttle — desde
a tinha (perdoem a expressão) que baila aos raios do Sol, à inteligência
humana, que verte das massas medulosas do cérebro, está submetido a princípios
fixos. Logo, não existe Deus.” Logo, existe
— dizemos nós — “Livre é cada qual de franquear os limites do
mundo visível — pondera Büchner — e de procurar fora dele uma razão que
governa, uma potência absoluta, uma alma mumdial, um Deus pessoal”, etc. Mas,
que é o que vos fala disso? “Nunca, em parte alguma — diz o mesmo literato —
nos mais longínquos espaços revelados pelo telescópio, pôde observar-Se um fato
que fizesse exceção e pudesse justificar a necessidade de uma força absoluta, operando
fora das coisas.”
A força não impelida por um Deus, não é uma essência das coisas isoladas
do princípio material” — adverte Moleschott. Ninguém terá visão tão limitada —
afirma ele alhures — para enxergar nas ações da Natureza forças outras não
ligadas a um substrato material. Uma força, que planasse livremente acima da
matéria, seria uma concepção absolutamente balda de sentido. Positivamente,
ainda hoje existem cavaleiros errantes, à guisa dos que outrora manobravam em
torno dos castelos do Reno, e de bom grado arremetem moinhos de vento. Lídimos
heróis de Cervantes, visto que, no fim de contas, qual o filósofo que hoje
propugna um Deus ou forças quaisquer fora da Natureza?
Vemos em Deus a essência virtual que sustenta o mundo em cada uma
de suas partes microscópicas, daí resultando ser o mundo como que por ele banhado,
embebido em todas as suas partes e que Deus está presente na composição mesma
de cada corpo. Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversários para
bloquear o Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda, nem
sequer objetiva a cidadela, e os nossos soldados alemães não fazem mais que
bater o campo.
Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa
idade, é imaginarem-se com direito de afirmar sem provas, a embalarem-se com a
doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar sob palavra. Coisas que a verdadeira
Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos. Afirmam, como se
houvessem assistido aos conselho da Criação, ou como se
fossem os próprios autores dela. Eis alguns espécimes de raciocínios,
cuja infalibilidade é tão ciosamente proclamada. Que os espíritos um tanto
afeitos à prática científica se dêem ao trabalho de analisar as seguintes
afirmações:
Moleschott diz que a força não é um deus que impele, não é um ser separado
da substância material das coisas (quer dizer separado ou distinto?). É a
propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma
força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigênio,
o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de
toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.” Cada uma
destas afirmativas, ou negativas, éuma petição de princípios, a depender do
sentido que dermos aos termos discutíveis, utilizados; mas, em suma, o que elas
resumem é que a força vale como propriedade da matéria. Ora, essa é,
precisamente, a questão. Os campeões da Ciência, que pretendem representá-la e
falar com e por ela, não se dignam de seguir o método científico, que é o de
nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu estandarte, com letras douradas,
estereotiparam uma legenda fulgurante, a saber: — toda a proposição não
demonstrada experimentalmente só merece repúdio — e, no entanto, logo de
início, esquecem a legenda. São pregadores de uma nova espécie: façam o que
digo e não o que eu faço. Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força
não impulsiona a matéria, exprimem um conceito imaginativo, nada científico.
Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria — diz
Dubois- Reymond — não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem
ou desatrelassem alternativamente as forças. Suas propriedades são
inalienáveis, transmissíveis de toda a eternidade.”
Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: «Quanto mais
nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Humanidade, por
uma judiciosa associação de ácido carbônico, de amoníaco e de outros sais; de
ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.
E também em nosso país: “Uma idéia — diz a Revista Médica — é uma combinação
análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo; a virtude, o
devotamento, a coragem, são correntes de eletricidade orgânica”,etc.
Quem vos disse tal coisa, senhores redatores? Olhem que os
leitores hão de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal
se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses raciocínios
são totalmente nulos. De fato, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes
da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.
Newton não se cansava de repetir: parece-nos, e Képler dizia:
submeto-vos estas hipóteses... Aqueles outros, porém dizem: afirmo, nego, isto
é, aquilo não é, a Ciência julgou, decido, condenou, posto que no que dizem não
haja sombra de argumento científico. Um tal método pode ter o merecimento da
clareza, mas ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.
É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga pesada das suas
próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores (mas deve ouvir, porque
sois seus filhos) — se a Ciência vos ouve, não pode deixar de sorrir das vossas
ilusões.
A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre Ciência,
em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um descomunal orgulho.
Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios,
a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura. Refleti, pois, que a
armadura das vossas parlandas ilude os ignorantes e pode induzir em erro
quantos não tiveram a faculdade de perlustrar os vossos estudos, e considerai
que, quando nos arrogamos o título de intérpretes da Ciência, ficamos na
obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por consequência,
modestos tradutores de uma causa que tem na modéstia o seu primacial
merecimento. Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma,
observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não
vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser
vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado
físico de certos grupamentos atômicos, e que a matéria governa o homem tão exclusivamente
quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais, O fenômeno mais curioso é o
de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações obscuras:
—“O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler (2), outra coisa não é
senão uma força da matéria, imediatamente resultante da atividade nervosa”... Mas...
de onde provém essa atividade nervosa?
— Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os atos do
espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo éter, ou
do movimento deste nos nervos — ao qual importa ajuntar uma variação mecânica,
física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros elementos
orgânicos...
—Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão. Virchow diz que “a
vida não é mais que modalidade particular da mecânica”; e Büchner afirma que “o
homem não passa de produto material; que não pode ser o que os moralistas pintam;
que não tem faculdade alguma privilegiada”. —Que há em todos os nervos uma
corrente elétrica — predica Dubois- Reymond — e que o pensamento mais não é que
movimento da matéria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da
substância cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins (3). E
Moleschott, assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que
movimentos materiais, ligada a correntes neuro-elétricas e percebidas pelo
cérebro. Teremos ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo autor
sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora, limitemo-nos
a estes edificantes testemunhos. Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental:
“E aí temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da
matéria”. Qual a consequência geral e filosófica desta noção tão simples quanto
natural? É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma
originado o mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da
Natureza, baseados na Filosofia e no empirismo.”
E, acrescentam— “qual o homem instruído, com um conhecimento mesmo
superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja o mundo governado
como geralmente se afirma, e sim que os movimentos da matéria estão submetidos
a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria?“
Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm ingenuamente declarar
não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da alma, agarrando-se
embora a uma sombra de noção científica por justificar as suas fantasias,
teríamos nós, ao seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em Deus.
Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do silogismo
ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as premissas irrefutáveis
e não tirar delas senão uma
conclusão legítima, e poderíamos acompanhá-los no raciocínio e
conferir-lhes um prêmio de retórica. Mas, vede em que consiste o seu processo:
Maior — A força é uma propriedade da matéria. Menor — Portanto,
uma propriedade da matéria não pode ser considerada superior, criadora ou
organizadora dessa matéria.
Conclusão — Logo, a idéia de Deus é uma concepção absurda.
É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a
discutir. Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa gente muito se
assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus,
assim começavam: — Jesus é Deus, e desse princípio não provado extraiam todas
as deduções.
Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando
aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca sonharam seguir.
Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra forma mais ingênua,
assim:
Antecedente — Matéria e força encontram-se sempre associadas. Consequente
— Logo, a força é uma qualidade da matéria. Aí temos, penso, um entimema de
novo gênero e de consequências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os
senhores Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores,
positivistas da nossa moderna França. No primeiro caso, o raciocínio peca pela
base; e, no segundo, nem mesmo faz jus a esse reproche, porque é uma
infantilidade. Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor —
perversão da faculdade de raciocinar — que se reduz o movimento materialista
dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a pelo a frase do misantropo que
dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador. Todo o fundamento desta
grande querela, toda a base deste edifício heterogêneo, cujo desmoronamento
pode esmagar muitos cérebros sob os escombros; toda a força deste sistema que
pretende dominar o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e potência,
repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais demonstrada, de ser a
força uma propriedade da matéria. E é fingindo acompanhar a rigor as
demonstrações científicas e só se
apoiar em verdades reconhecidas; é confungindo-se ao estandarte da
Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim, com ela
mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as suas
belas e edificantes doutrinas. Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência
fala de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso
brilho. Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente,
como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se, e,
sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar
ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister. A exposição
precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a tática do ateísmo contemporâneo. Ele
não é fruto direto do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa
aparência. Evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre eles
uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à Ciência as suas
teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Estas
teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da
nossa época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho
científico. Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e
da juventude desprecavida e entusiasta, tendendo a lhes fazer crer que as ciências,
à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem
alma. São eles que fazem a Ciência. Dir-se-ia, em os ouvindo, nada haver além
deles. Os grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os
modernos, são fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo
pretensamente científico. Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe
iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira
comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento
de causa e adquiram a certeza de que os fatos científicos, perquiridos sem
prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem impor.
Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo
materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de velho e
carcomido tronco de madeira podre, e, no fundo, os partidários do sistema não
estão mais seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de
Heráclito ou de Epícuro.
Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema
não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos.
E uma vez que são eles próprios a declarar que toda hipótese deve ser banida da
Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimento. Realmente, com
que direito fazem da força atributo da matéria?
Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que
lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes, mortos,
indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de inverterlhes a
proposição, derrubando-lhes o edifício pela base. Terminemos assim esta
exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos
fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela?
Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para falar com
mais exatidão — trata-se de observar a Natureza e optar depois. E, pois que os
honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro
enunciado, começamos revocando-o em dúvida e propondo a alegação contrária.
*
No rostro desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta: A
força rege ou é regida pela matéria? Este o dilema que os fatos de si mesmos
devem resolver. O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração
de soberania da força e da ilusão dos materialistas. Da matéria, nos elevamos
às forças que a dirigem; destas, às leis que as governam, e destas, ainda, ao
seu misterioso autor. A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de
alguns ínfimos seres humanos recusam-se a escutá-los. A mecânica celeste lança,
ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes
desdenha a grandeza da sua arquitetura. A luz, o calor, a eletricidade, pontos
invisíveis projetados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços
infinitos o movimento, a atividade, a vida, a radiação do esplendor e da
beleza, e as imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um
parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É
loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de
tão estranha aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol
como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como
na primaveril violeta? — porque a vida magnificante doura as messes de Julho e
os cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas?
— porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque
envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo, e eclipsar,
tristemente, a luz imácula que desce dos céus? Antes de penetrar os mistérios
do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material
do Universo, começando por demonstrar a soberania da força no tracejar desse
mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para
estabelecer em primeiro lugar, por leis astronômicas e depois pelas terrestres,
que, onde quer que exista a matéria, jamais deixou de ser escrava servil,
universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir,
de modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem
termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra
nada é. A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do Infinito; o céu a
envolve no ilimitado e a integra na população astral, sem exceção nem
privilégio particular. Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma
pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saara um grão de areia. É comparar o
todo a um mínimo do mesmo todo. Importa, portanto, não interpretar literalmente
a nossa divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para
nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula
lagarta, que aflora numa folha, esta folha que algo vale, mau grado à sua
insignificância no conjunto da
pradaria. Nossa esfera de observação divide-se também,
naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso
mundo. Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria
está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta,
composta de elementos incapazes de se dirigirem por si mesmos; que não agem nem
pensam por impulso próprio e que, nos sendais invisíveis do espaço, tanto como
nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas
e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a
inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.
(1) La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.
(2) Körper und Gelst, etc.
(3) Physiologische Briefe.
(Mensagem extraída do Livro DEUS NA NATUREZA, de Camille Flammarion)
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