quinta-feira, 19 de outubro de 2017

E SE FOSSE COMIGO?

E SE FOSSE COMIGO?

por Liz Bittar em Julho, 2010

Um dia, quando menos se espera, pode acontecer. De madrugada, um telefonema. Do outro lado da linha, a voz embargada do filho: “Pai, vem me socorrer. Me envolvi em um acidente". O susto é tão grande que você esquece de pedir detalhes. Ainda sonolento, tentando controlar o pânico, sai em disparada ao encontro dele.
No caminho, enquanto dá graças aos céus por salvar o seu filho, vai relembrando o passado. Desde a infância até a idade adulta, lembra das cantigas de ninar, dos desenhos com dedicatória, das primeiras gracinhas. Lembra das travessuras de moleque, das brigas com os primos, das notas baixas e das broncas. Lembra que, enquanto seu filho crescia, você depositava nele esperanças, sonhos – e o futuro que você tinha planejado não incluía acidentes de madrugada.
Um arrepio lhe corre pela espinha: Meu Deus, estive a um triz de perder o meu filho! E todas as suas esperanças, todos os seus planos pra ele ficam ainda maiores: você percebe que o tempo está passando rápido demais, e você ainda não realizou nem metade!
A função dos pais é proteger, resguardar os filhos. É esse o chamado no meio da madrugada: “Pai, vem me resgatar!” E você, pai aflito, só consegue ter um pensamento: poupar o filho, apagar o ocorrido, fingir que não aconteceu.Você quer inundar o seu filho de amor, levá-lo de imediato pra um lugar seguro; inventar uma “Terra da Felicidade” e colocá-lo ali, livre de preocupações. “Graças a Deus você está salvo! O resto não importa”.
Mas, a vida pode te colocar em uma situação para a qual você estava ainda menos preparado: o seu filho, salvo, protegido, intacto, acaba de tirar uma vida humana. Outros pais sofrem, agora, tudo aquilo que você, por um triz, foi poupado.
A você cabe então uma decisão difícil: Garantir a segurança e o bem estar do seu filho, comprando o silêncio das testemunhas e burlando a lei, ou entregar o seu filho (o seu menino) aos leões.
Não é uma decisão fácil. Nunca é fácil se colocar no lugar do outro – nem mesmo quando o outro acaba de perder o maior bem desta vida. Mas também não é fácil entregar um filho à impiedade da lei; enfrentar delegacia, correr o risco de ser preso, misturar-se com bandidos.
Você vai me dizer “Não, não foi isso que eu planejei pra ele; não foi pra isso que vivi a minha vida inteira. Desde que ele nasceu, não houve um só dia na minha vida que não tenha sido dedicado ao seu bem estar, à garantia de sua felicidade, ao investimento em suas realizações.”
Concordo com você. Assim somos nós, pais e mães. A isso nos dedicamos, todos nós. Mas, quantos de nós nos preocupamos em realmente preparar nossos filhos para a VIDA? Cada vez que deixamos pra lá, encobrimos uma falta por menor que seja, cada vez que isentamos nossos filhos de arcarem com as conseqüências de seus pequenos mal-feitos, será que estamos mesmo “poupando-os”, educando-os para a vida?
Você pode me dizer que tudo o que fez foi porque só queria que seu filho fosse feliz. Eu sei, todos queremos. Mas, quem foi que disse que ser feliz é não sofrer jamais? Quem disse que os pais devem tomar para si as dores dos filhos? A dor faz parte do processo de crescimento, não se deve temê-la, mas preparar-se para ela.
Quando li que o plano inicial do pai do motorista que atropelou Rafael Mascarenhas era pagar suborno a policiais corruptos, consertar o carro e apagar assim qualquer vestígio de culpabilidade do filho, senti mais pena dele do que da Cissa Guimarães - porque ela perdeu parte de sua alma, com a morte do filho... mas não a vendeu, como fez o pai do atropleador.
Quando ele soube que a vítima era filho de pessoa pública, percebeu que não adiantava pagar suborno; a mídia iria falar de qualquer jeito! Foi aí que parou para pensar. E você, já pensou? Já se perguntou:“E se fosse comigo?”
“E se meu filho tivesse atropelado alguém, matado alguém – mesmo sem querer? Mesmo sem estar correndo, mesmo sem ter bebido, mesmo sendo um motorista cauteloso, mesmo tendo sido sempre um rapaz correto, bom filho, bom amigo? E se fosse com ele? E se fosse comigo?”
Você parou pra pensar nisso? Não sobe, em você também, um calafrio incômodo pela espinha? O que você faria?
“Você ia direto me apresentar na delegacia”, respondeu meu filho. É verdade. Mas não sem estar com o coração partido. Não, sem sofrer por ele e sem perder parte da minha alma, pela vítima. Vítima de uma fatalidade, que interromperia o futuro de felicidade sem máculas planejado para um filho tão amado, tão querido.
Criamos nossos filhos com amor e esperamos que eles sejam responsáveis quando crescerem. Seria maravilhoso, mas não é assim que funciona. Amor não basta.
Se estamos empenhados em construir em nossos filhos alicerces afetivos e éticos, como negligenciar da fé?
Fico impressionada com a quantidade de pais que não se preocupam em oferecer aos seus filhos formação religiosa – afinal, existe coisa mais fora de moda?
Fé e religião nunca saíram de moda – a forma de ensinar talvez deva ser mudada (refiro-me aqui essencialmente à teoria). Mas é na prática, é exemplificando, vivenciando os conceitos, que vamos realmente educar nossos filhos em questões de ética e de fé.
O triste acidente de Rafael é muito mais do que um caso de polícia. Envolve amor ao próximo, perdão, esperança e fé – para ambas as famílias.
O coração transtornado do pai que é capaz de vender sua alma na ilusão de arrancar dos ombros do filho o peso da culpa, poderia ter compreendido mais cedo que o dinheiro só apaga evidências materiais; as da alma, são curadas de outra forma. Quanta falta lhe está fazendo a fé!
O coração em frangalhos da mãe, que tem que entregar seu filho aos homens da lei, travestidos de carrascos aos seus olhos, poderia encontrar consolo e esperança na certeza de que, permitindo que seu filho assuma as consequências de seus atos, mesmo quando não intencionais, faz o mesmo que lavar-lhe a alma, e prepará-la para florescer de novo.
A impressão que fica é que a vida, que andava por demais acelerada, agora fez uma parada obrigatória; uma pausa para reabastecer. Um momento mais do que propício para recarregar-se - agora sim - de fé, de amor ao próximo e de humildade. Hora de se encontrar com Deus.
Que Deus permita que assim seja, e que esta tragédia possa ser o início desta caminhada. Um despertar, para o que realmente importa.
E a mãe que teve seu coração extirpado, dilacerado e enterrado, e lava a alma com seu pranto, também tem agora o seu encontro com Deus. Nossas preces são para que ela se sinta em paz, e não vingada; que descubra o perdão, e não a revolta. E que uma grande calmaria a arrebate, para que se deixe acolher, em suave entrega, aos braços serenos da fé.


por Liz Bittar em 24 de Julho de 2010 
site http://oqueosespiritosdizem.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O Juiz Reto

Ao tribunal de Eliaquim ben Jefté, juiz respeitável e sábio, compareceu o negociante Jonatan ben Cafar arrastando Zorobabel, miserável mendi...