IX – Provas Voluntárias e Verdadeiro Cilício
UM ANJO DA GUARDA
Paris, 1863
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– Perguntais se é permitido abrandar a vossas provas. Essa pergunta
lembra estas outras: É permitido ao que se afoga procurar salvar-se? E a
quem se espetou num espinho, retirá-lo? Ao que está doente, chamar um
médico? As provas têm por fim exercitar a inteligência, assim como a
paciência e a resignação. Um homem pode nascer numa posição penosa e
difícil, precisamente para obrigá-lo a procurar os meios de vencer as
dificuldades. O médico consiste em suportar sem murmurações as
conseqüências dos males que não se podem evitar, em preservar na luta,
em não se desesperar quando não se sai bem, e nunca em deixar as coisas
correrem, que seria antes preguiça que virtude.
Essa
questão nos conduz naturalmente a outra. Desde que Jesus disse:
“Bem-aventurados os aflitos”, há mérito em procurar as aflições,
agravando as provas por meio de sofrimentos voluntários? A isso
responderei muito claramente: Sim, é um grande mérito, quando os
sofrimentos e as privações têm por fim o bem do próximo, porque se trata
da caridade pelo sacrifício; não, quando eles só têm por fim o bem
próprio, porque se trata de egoísmo pelo fanatismo.
Há
uma grande distinção a fazer. Quanto a vós, pessoalmente, contentai-vos
com as provas que Deus vos manda, não aumenteis a carga já por vezes
bem pesada; aceitai-as sem queixas e com fé, eis tudo o que Ele vos
pede. Não enfraqueçais o vosso corpo com privações inúteis e macerações
sem propósito, porque tendes necessidades de todas as vossas forças,
para cumprir vossa missão de trabalho na Terra. Torturar
voluntariamente, martirizar o vosso corpo, é infligir a lei de Deus, que
vos dá os meios de sustentá-lo e de fortalecê-lo. Debilitá-lo sem
necessidade é um verdadeiro suicídio. Usai, mas não abuseis: tal é a
lei. O abuso das melhores coisas traz as suas punições, pelas
conseqüências inevitáveis.
Bem
outra é a questão dos sofrimentos que uma pessoa se impõe para aliviar o
próximo. Se suportardes o frio e a fome para agasalhar e alimentar
aquele que necessita, e vosso corpo sofrer com isso, eis um sacrifício
que é abençoado por Deus. Vós, que deixais vossos toucadores perfumados
para levar consolação aos aposentos infectos; que sujais vossas mãos
delicadas curando chagas; que vos privais do sono para velar à cabeceira
de um doente que é vosso irmão em Deus; vós, enfim, que aplicais a
vossa saúde na prática das boas obras, tendes nisso o vosso cilício,
verdadeiro cilício de bênçãos, porque as alegrias do mundo não
ressecaram o vosso coração. Vós não adormecestes no seio das
voluptuosidades enlanguescedoras da fortuna, mas vos transformastes nos
anjos consoladores dos pobres deserdados.
Mas
vós que vos retirais do mundo para evitar suas seduções e viver no
isolamento,qual a vossa utilidade na Terra? Onde está a vossa coragem
nas provas, pois que fugis da luta e desertais do combate? Se quiserdes
um cilício, aplicai-o à vossa alma e não ao vosso corpo; mortificai o
vosso Espírito e não a vossa carne; fustigai o vosso orgulho; recebei as
humilhações sem vos queixardes; machucai vosso amor próprio;
insensibilizai-vos para a dor da injúria e da calúnia, mais pungente que
a dor física. Eis aí o verdadeiro cilício, cujas feridas vos serão
contadas, porque atestarão a vossa coragem e a vossa submissão à vontade
de Deus.
*
BERNARDIN
Espírito protetor, Bordeaux, 1863
27
– Deve-se pôr termo às provas do próximo, quando se pode, ou devemos,
por respeito aos desígnios de Deus, deixá-las seguir o seu curso?
Já
vos dissemos e repetimos, muitas vezes, que estão na terra de expiação
para completarem as vossas provas, e que tudo o que vos acontece é
conseqüência de vossas existências anteriores, as parcelas da dívida que
tendes a pagar. Mas este pensamento provoca em certas pessoas reflexões
que devem ser afastadas, porque podem ter funestas conseqüências.
Pensam
alguns que, uma vez que se está na Terra para expiar, é necessário que
as provas sigam o seu curso. Há outros que chegam a pensar que não
somente devemos evitar atenuá-las, mas também devemos contribuir para
torná-las mais proveitosas, agravando-as. É um grande erro. Sim, vossas
provas devem seguir o curso que Deus lhes traçou, mas acaso conheceis
esse curso? Sabeis até que ponto elas devem ir, e se vosso Pai
Misericordioso não disse ao sofrimento deste ou daquele vosso irmão:
“Não irás além disto?” Sabeis se a Providência não vos escolheu, não
como instrumento de suplício, para agravar o sofrimento do culpado, mas
como bálsamo consolador, que deve cicatrizar as chagas abertas pela sua
justiça?
Não
digais, portanto, aos verdes um irmão ferido: “É a justiça de Deus, e é
necessário que siga o seu curso”, mas dizei, ao contrário: “Vejamos que
meios nosso Pai misericordioso me concedeu, para aliviar o sofrimento
de meu irmão. Vejamos se o meu conforto moral, meu amparo material, meus
conselhos, poderão ajudá-lo a transpor esta prova com mais força,
paciência e resignação. Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os
meios de fazer cessar este sofrimento; se não me deu, como prova também,
ou talvez como expiação, o poder de cortar o mal e substituí-lo pela
benção da paz”.
Auxiliai-vos
sempre, pois em vossas provas mútuas, e jamais vos encareis como
instrumentos de tortura. Esse pensamento deve revoltar todo homem de bom
coração, sobretudo os espíritas. Porque o espírito mais que qualquer
outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. O
espírita deve pensar que sua vida inteira tem de ser um ato de amor e de
abnegação, e que por mais que faça para contrariar as decisões do
Senhor, sua justiça seguirá o seu curso. Ele pode, pois, sem medo, fazer
todos os esforços para aliviar o amargor da expiação, porque somente
Deus pode cortá-la ou prolongá-la, segundo o que julgar a respeito.
Não
seria excessivo orgulho, da parte do homem, julgar-se com o direito de
revolver, por assim dizer, a arma na ferida? De aumentar a dose de
veneno para aquele que sofre, sob o pretexto de que essa é a sua
expiação? Oh!, considerai-vos sempre como o instrumento escolhido para
fazê-la cessar. Resumamos assim: estais todos na Terra para expiar; mas
todos, sem exceção, deveis fazer todos os esforços para aliviar a
expiação de vossos irmãos, segundo a lei de amor e caridade.
*
SÃO LUIS
Paris, 1860
28
– Um homem agoniza, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que o seu
estado é sem esperança. É permitido poupar-lhe alguns instantes de
agonia, abreviando-lhe o fim?
Mas
quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode
ele conduzir um homem até a beira da sepultura, para em seguida
retirá-lo, com o fim de fazê-lo examinar-se a si mesmo e modificar-lhe
os pensamentos? A que extremos tenha chegado um moribundo, ninguém pode
dizer com certeza que soou sua hora final. A ciência, por ação, nunca se enganou nas suas previsões?
Bem
sei que há casos que se podem considerar, com razão, como desesperados.
Mas se não há nenhuma esperança possível de um retorno definitivo à
vida e à saúde, não há também inúmeros exemplos de que, no momento do
último suspiro, o doente se reanima e recobra suas faculdades por alguns
instantes? Pois bem: essa hora de graça que lhe é concedida, pode ser
para ele da maior importância, pois ignorais as reflexões que o seu
Espírito poderia ter feito nas convulsões da agonia, e quantos tormentos
podem ser poupados por um súbito clarão de arrependimento.
O
materialista, que só vê o corpo, não levando em conta a existência da
alma, não pode compreender essas coisas. Mas o espírita, que sabe o que
se passa além túmulo, conhece o valor do último pensamento. Aliviai os
últimos sofrimentos o mais que puderdes, mas guardai-vos de abreviar a
vida, mesmo que seja apenas um minuto, porque esse minuto pode poupar
muitas lágrimas no futuro.
*
SÃO LUIS
Paris, 1860
29
– Aquele que está desgostoso da vida, mas não querendo abreviá-la, será
culpado, indo procurar a morte num campo de batalha, com o pensamento
de torná-la útil? Quer
o homem se mate ou se faça matar, o objetivo é sempre o de abreviar a
vida, e por conseguinte, há o suicídio de intenção, embora não haja de
fato. O pensamento de que a sua morte servirá para alguma coisa é
ilusório, simples pretexto, para disfarçar a ação criminosa e
desculpá-los aos seus próprios olhos. Se ele tivesse seriamente o desejo
de servir à pátria, procuraria antes viver para dedicar-se à sua
defesa, e não morrer, porque uma vez morto já não serve para nada. A
verdadeira abnegação consiste em não temer a morte quando se trata de
ser útil, em enfrentar o perigo e oferecer o sacrifício da vida,
antecipadamente e sem pesar, se isso for necessário. Mas a intenção
premeditada de procurar a morte, expondo-se para tanto ao perigo, mesmo a
serviço, anula o mérito da ação.
*
SÃO LUIS
Paris, 1860
30
– Um homem se expôs a um perigo iminente para salvar a vida de um
semelhante, sabendo que ele mesmo sucumbirá; isso pode ser considerado
como suicídio? Não
havendo a intenção de procurar a morte, não há suicídio, mas
devotamento e abnegação, mesmo com a certeza de perecer. Mas quem pode
ter essa certeza? Quem diz que a Providência não reservará um meio
inesperado de salvação, no momento mais crítico? Não pode a salvar até
mesmo aquele que estiver na boca de um canhão? Pode ela, muitas vezes,
querer levar a prova da resignação até o último limite, e então uma
circunstância inesperada desvia o golpe fatal.
*
SÃO LUIS
Paris, 1860
31
– Os que aceitam com resignação os seus sofrimentos, por submissão à
vontade de Deus e com vistas à sua felicidade futura, não trabalham
apenas para eles mesmos, e podem tornar os seus sofrimentos proveitosos
para outros?
Esses
sofrimentos podem ser proveitosos para outros, material e moralmente.
Materialmente, se, pelo trabalho, as privações e os sacrifícios que se
impõem contribuem para o bem-estar material do próximo. Moralmente, pelo
exemplo que dão, com sua submissão à vontade de Deus. Esse exemplo do
poder da fé espírita pode incitar os infelizes à resignação, salvando-os
do desespero e de suas funestas conseqüências para o futuro.
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO
Por ALLAN KARDEC